Criador do boxe (moderno) só não é português porque era judeu
Para se perceber por que é que Daniel Mendoza era inglês, também se fala de uma princesa casada na infância e do copo de água que matou D. João...
Basta corrida breve à história para se apanhar a ideia: «o pai do boxe moderno é Daniel Mendoza». Esse Mendoza do apelido agora até poderia insinuá-lo espanhol, mas não: tendo nascido (por julho de 1764) em Whitechapel, nas cercanias de Londres, se o quisessem, os seus descendentes poderiam tornar-se o que o pai de Daniel teve de deixar de ser: português - pois a alteração à Lei da Nacionalidade de 2015 permite que todos os descendentes de sefarditas o sejam (por lhes ter sido feito o que se lhe fizera…)
Sefarditas lhes chamavam por tratarem no seu hebraico a Península Ibérica como Sefarad - e quando, em 1492, D. Isabel e D. Fernando, os fanáticos «reis católicos», determinaram aos sefarditas
- ou se convertem ao catolicismo ou são expulsos do reino.
D. João II permitiu aos que não se converteram que saltassem para o lado de cá da fronteira:
- entravam pagando uma espécie de portagem, recebendo, em troca, salvo-conduto.
Vivendo-se falta de certa mão de obra aos que fosse ferreiros ou carpinteiros, oleiros ou tecelões, os funcionários régios faziam desconto – e não tardou que o que parecera não ser cedência à intolerância religiosa que se ateara em Castela levasse a situações terríveis, Maria José Oliveira contou-o numa reportagem do Observador:
- Em 1493 D. João II ordenou que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida pelos animais. As restantes sucumbiram à fome.
Na autorização de entrada que D. João II lhe concedia havia prazo de validade – e Maria José Oliveira também o revelou:
- O salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. Os judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem sido maltratados e roubados pelos mouros.
Da princesa casada na infância à misteriosa morte do príncipe na queda do cavalo e como, por entre o mistério de um copo de água que matou D. João II, rei ficou D. Manuel I
Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, os reis de Espanha, tinham apenas um filho varão: D. Juan, marcado por saúde frágil – e a filha mais velha era casada desde a infância com D. Afonso, príncipe herdeiro de Portugal. Temendo que D. Juan falecesse cedo e sem descendência, Fernando e Isabel acharam que grande era o risco de que Afonso se pudesse tornar não apenas Rei de Portugal, mas também de Castela e Aragão e desataram em «manobras diplomáticas e religiosas com vista a dissolver-lhes o casamento. Não o conseguiram e, algures por 1941, o príncipe Afonso foi dado como morto numa «misteriosa queda de cavalo durante passeio à beira do Tejo» - logo desatando a correr em boataria (ou talvez não…) que talvez tivesse sido vítima de cilada ou conspiração a mando de Fernando II e Isabel I.
Vendo-se sem herdeiro legítimo, D. João II tentou obter a legitimação de Jorge de Lencastre, o Duque de Coimbra, filho bastardo que nascera de relação adúltera com Ana Furtado de Mendonça, dama de honor da princesa Joana, a Beltraneja – e não o logrou.
Durante o resto da sua vida, João II tentou, sem sucesso, obter a legitimação do seu filho bastardo, Jorge. Jorge, Duque de Coimbra, era fruto da relação adúltera do rei com Ana Furtado de Mendonça, filha de um fidalgo da corte e dama de honor da princesa Joana, a Beltraneja.
Tendo já o seu estilo oficial marcado pela frase: Pela Graça de Deus, João II, Rei de Portugal e dos Algarves, d´Aquém e d´Além Mar em África e Senhor da Guiné - aquele que a história consagrou como O Príncipe Perfeito morreu no Alvor a 25 de outubro de 1945, insinuando-se que pudesse ter sido vítima de «envenenamento por um copo de água que tomou». Por essa altura já indicara como sucessor o Duque de Beja, que, casado com Leonor, era seu cunhado – que a 27 de outubro de 1495 se aclamou D. Manuel I, Rei de Portugal.
Apesar do seu fervor católico, os primeiros anos do reinado de D. Manuel foram de tolerância em relação à comunidade judaica – a ponto de ter escolhido para seu médico pessoal um sefardita: Abraão Zacuto que sendo também matemático e astrónomo foram um dos principais conselheiros do rei quando ele se pôs a montar a expedição de Vasco da Gama à Índia.
Aliás, fez mais: mandou libertar todos os judeus que, tendo fugido de reinos de Espanha, estivessem em situação de escravatura - e logo uma ideia se vincou:
- Essa tolerância de D. Manuel era também justificada pela necessidade do capital financeiro e intelectual das comunidades hebraicas que sabia essencial para a sua política expansionista, o fulgor dos Descobrimentos.
Para se casar o rei com a princesa que enviuvara do príncipe que não chegou a Rei, lançou-se Portugal no ataque aos judeus
Não muito escondida era a sua ambição de «unir os reinos ibéricos» sob a sua coroa – e, nesse sentido, D. Manuel propôs casar-se com D. Isabel (a viúva de D. Afonso, o filho de D. João II). Os Reis Católicos de Espanha (os pais dela) aceitaram-no com uma condição: que expulsasse do Reino de Portugal, tal como eles já tinham feito, os «infiéis» (que era como tratavam os judeus e os mouros) – o que se acordou na assinatura do Édito de Alhambra.
De casamento feito em novembro de 1496, não tardou a ordem: que todos os sefarditas abandonassem o Reino de Portugal até final de outubro de 1497. Não o cumprindo seriam condenados à morte, confiscando-se-lhes todos os bens. O Conselho de Estado, reiterou-lhe o aviso:
- Tal poderá levar a fuga de capitais de graves consequências…
e D. Manuel, para o evitar, arranjou artimanha: os que se convertessem ao catolicismo poderiam ficar, apontando como prazo para o batismo a Páscoa de 1497: «A tentativa de D. Manuel de manipular a situação, com avanços e recuos, teve resultados muito violentos. Por exemplo: para evitar a saída em massa pela expulsão exigida por Castela, permitiu período mais alargado de conversão ao cristianismo, isentando os convertidos de qualquer inquérito durante vinte anos, o que na prática lhes permitia continuar os rituais hebraicos. Ou então obrigou à educação por famílias cristãs de filhos de judeus, que os recuperariam caso se convertessem. No entanto, esta tentativa, já de si violenta, redundou em fracasso, com conversões forçadas em massa, com o acicatar dos fundamentalistas religiosos e dos populares descontentes e com a criação de uma comunidade de cristãos-novos ou marranos sempre sob suspeita…»
Maria José Oliveira notou-o (em revelação mais chocante):
- A conversão forçada começou com uma medida trágica. Na Páscoa de 1497, D. Manuel I mandou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades do país. Pouco depois, a ordem estendeu-se aos jovens com 20 anos. E os resultados foram horríveis. Muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios, contou Damião de Góis. A perseguição não ficou por aqui. O monarca restringiu ainda o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital. Segundo Jorge Martins, cerca de 20 mil pessoas, oriundas de várias zonas, foram encaminhadas para o Palácio dos Estaus, futura sede da Inquisição (localizada onde é hoje o Teatro Nacional D. Maria II), ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque. A ideia de aprisioná-los nos Estaus tinha um motivo. Enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real. Os dois homens tinham uma missão: persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para as igrejas da Baixa e batizados contra a sua vontade; outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços. Aqueles que, não tendo sido batizados, ficaram no país, já como escravos do rei, apresentaram uma proposta a D. Manuel I. Aceitavam a conversão, mas pediam algo em troca: a restituição dos seus filhos; e a garantia de que o rei não ordenaria qualquer inquérito sobre as suas práticas religiosas num período de 20 anos. D. Manuel I anuiu. E a 30 de maio de 1497 foi publicada a proibição de inquirições sobre as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. Ou seja, consentiu oficiosamente o judaísmo (daqui nasce o criptojudaísmo, a prática clandestina da religião). O decreto tinha ainda outras cláusulas: ao fim de 20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de judaizar, teria direito a conhecer os seus acusadores para que pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime de heresia, seria condenado à perda de bens, posteriormente legados aos herdeiros cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim poderiam utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os cristãos-novos não deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez que estavam convertidos à Santa Fé. As garantias inscritas no decreto não convenceram, porém, uma parte da comunidade. Muitos optaram por sair do país, levando consigo os seus bens, e os mais ricos negociaram letras de câmbio com os cristãos, para depois serem trocadas noutro país. Isto é: uma parte da riqueza do país estava a fugir. D. Manuel I entendeu que devia agir e, em 1499, reagiu à fuga das fortunas com a publicação de duas leis: a primeira proibia o negócio com os judeus; e a segunda impedia a saída do reino dos conversos de 1497 sem prévia autorização régia. O incumprimento das normas resultaria no confisco dos bens dos infratores…
Para Mendoza, tudo começou no desafio ao soco na casa de chá por causa de um carregador (e ir a passar quem ia…)
Muitos dos sefarditas que não escaparam logo, foram escapando depois – e foi assim que os ascendentes de Daniel Mendoza (alguns deles que tinham já saltado de Espanha, da região de Jaen, para Portugal…) foram para a Inglaterra e ele se tornou, por lá, o Pai do Boxe Moderno. Vivendo em ambiente pobre em East End, foi o pai (que era artesão) quem lhe deu as primeiras lições de «uso de punhos» - e aos 13 anos, quando estava a aprendiz de vidraceiro, foi despedido por ter espancado o filho do patrão numa luta para que ele o desafiara. Saltou para uma casa de chá em Aldgate – e foi aí que se começou a descobrir o seu futuro…
Ao chegar-lhe à loja com carregamento de chá, o transportador («de ombros largos e corpo gigante») exigiu ao patrão o dobro do dinheiro que combinara e com isso se abriu, agreste, discussão entre ambos. Por entre ela, Daniel Mendoza não calou o remoque:
- O senhor está a comportar-se de maneira que não é adequada a um cavalheiro.
Mendoza media andava pelos 16 anos, media 1,70 metros, pesava 75 quilos. Olhando-lhe para o rosto imberbe e físico enganador, o carregador lançou-lhe, atrevidote, o desafio:
- Vamos, então, lá para fora resolver a questão, com um duelo de punhos!
Num simulacro de ringue esboçado na rua, estiveram ambos 45 minutos ao soco – até que o, amachucado pelos golpes de Dan, desistiu, resignado, da luta.
Richard Humphries era, então, figura mais notável em Londres. Tratavam-no pelo cognome: The Gentleman Boxer. Para além de lutador, tinha, montada, academia na cidade, onde «ensinava a arte viril da autodefesa» (sim, era assim também que se tratava o boxe, por lá). O destino tem caprichos assim: indo de passagem pela loja dos chás, Humphries apercebeu-se, embasbacado, com o modo como Mendoza derrubara o antagonista por 15 vezes em menos de 12 minutos – e, fechado o combate com o carregador em KO, Humphries largou a Dan o seu espanto, num clamor:
- Incrível! Tu és um prodígio, rapaz!
e logo combinou passar a treiná-lo, na sua academia.
Não muito tempo antes tinham-se posto em vigor as regras do London Prize Ring – que criaram, por exemplo, o árbitro de combate, proibindo igualmente o que se fazia nos Jogos Olímpicos da Antiguidade: golpear-se o adversário ao vê-lo caído, atingi-lo a pontapé. Contudo, permitido continuava a ser a mordidela, o puxar de cabelos.
Antes de Muhammad Ali já Daniel Mendoza voava como uma borboleta e picava como uma abelha
Não foi preciso esperar muito para o perceber: que Daniel Mendoza usava, por instinto, forma hábil de contrariar o «físico mais leve»: foi o primeiro boxeur a deixar de lutar parado (ou quase) diante do adversário (como era normal então), o primeiro a usar a astúcia e a velocidade para desconcertar quem tinha pela frente, quer a atacar, quer a defender, foi, igualmente, o primeiro a «utilizar o jab inteligente e o jogo de pés». Sim, claro: essa foi a razão por que dele se passou a dizer que «inventara o boxe moderno», num jeito que (muito anos do tempo) haveria de ficar marcado pela famosa frase de Muhammad Al, a justificação que deu para estar já onde estava, na sua imortalidade:
- Voo como uma borboleta, pico como uma abelha!
Juntando o seu instinto à preparação que Richard Humphries lhe foi dando, Dan Mendoza lançou-se ao seu primeiro combate profissional aos 18 anos, na Mile End Road, contra Harry the Coalheaver. Espancou o «Ceifador do Carvão» em 40 minutos – e tendo sido, «ainda poucos os trocados que ganhara», nesse dia ganhou o cognome que não mais o largou: «A Luz de Israel».
Após mais 17 combates invicto, foi derrotado por Tom Tyne, «após luta acirrada». Num fogacho lhe pediu «revanche». A desforra foi sete meses depois em Croydon e quem viu o combate (que durou 27 rounds) não deixou de o exaltar:
- É cada vez mais científico o boxe de Dan.
O dinheiro que o futuro Rei de Inglaterra deu a Mendoza acabou por ser razão da discórdia que a polícia não deixou que acabasse em luta na rua
Ainda mais refinado naquele seu jeito de «voar como borboleta e picar como abelha», a 17 de abril de 1787 precisou de 10 rounds apenas para pôr KO San Martin, O Açougueiro de Bath. Multidão em euforia e frenesim, levou-o em ombros do ringue a casa, cantando por entre tochas acesas See the Conquering Hero Comes.
A vitória valera-lhe prémio de 500 libras e Príncipe de Gales (que haveria de se tornar o rei Jorge IV) que estivera a vê-lo lutar precipitou-se para Daniel Mendoza e, «apertando-lhe a mão, fascinado», ofereceu-lhe, do seu bolso, mais 500 libras. Gazetas de Londres afirmaram que aquele «aperto de mão» elevara estatuto dos judeus da cidade, «como nunca antes se fizera» - e em rumor se apanhou que esse «reconhecimento» irritara Richard Humphries que, para além de seu treinador, era seu empresário.
O que, porém, descabelou Humphries foi sabê-lo num fogacho: que com as 1000 libras que colhera, Mendoza decidira criar em Capel Court «para ensinar o seu boxe moderno, o seu boxe científico». A discórdia aqueceu num encontro entre ambos na Cock Tavern, em Epping Forest. Trocaram ofensas um com o outro, quiseram ir, ambos, tratar da questão a soco, na rua – a polícia que passava não o permitiu. Concordaram, então, fazer luta que decidisse «quem era o melhor boxeur do mundo» (sim, achava-se, então, que o melhor Inglaterra era o melhor do mundo…), limpando-se honras feridas, pelo caminho. Fez-se a 9 de setembro de 1787 – e Richard Humphries venceu-o.
Se esse combate quase foi apenas «questão entre dois antigos amigos desavindos», o combate seguinte não. Marcou-se para 8 de janeiro de 1788, em Odiham, Hampshire – e é ponto-chave na história do boxe britânico (e não só). Foi a primeira vez que se cobraram bilhetes para se assistir a um evento desportivo em Inglaterra – e as 10 000 entradas esgotaram-se num ápice.
Também nunca se vira, o que se viu: sete jornais ingleses a publicarem artigos a propósito da luta (do Times ao London Chronicle, os dois principais) e nos Estados Unidos aconteceu o mesmo. A imprensa apostou sobretudo em cartas ameaçadoras de um para o outro – e num dos jornais londrinos Mendoza zombou:
- O senhor Humphries está com tanto medo de mim que talvez nem apareça no ringue. Embora tenha a vantagem da idade e da força, embora seja professor desta arte, parece-me que acabará por evitar lutar contra a minha habilidade.
Para manter o ambiente espicaçado, logo outro jornal publicou a réplica de Richard:
- Espero que Dan me diga isso lá, no ringue, onde o encontrarei para voltar a batê-lo, a bater-lhe…
Da derrota por causa do piso molhado à revolução através da «Escola Judaica»
Em frenesim raro entraram as bolsas de apostas, movimentaram-se 40 000 libras – com Richard Humphries favorito a 2 para 1. No dia do combate, com ambos na plateia entre si, o Príncipe de Gales e o Duque de York também apostaram entre si – o futuro rei Jorge IV pendia para Dan e perdeu (mas mais por um golpe do destino do que pelos golpes de Richard): ao cabo de 29 minutos Mendoza escorregou no piso molhado, torceu o tornozelo e não foi capaz de continuar em peleja. Dado, assim, como vencedor, Humphries mandou, orgulhoso, mensagem ao seu patrono que dizia:
- Mister Brady, bati o judeu, estou de boa saúde e ele não.
Por ter sucedido o que sucedera, Dan Mendoza exigiu combate de desforra. Foi a 6 de maio de 1789, em Stilton, Huntingdonshire. Mendoza treinara-se em segredo, «como se fosse um soldado a preparar-se para a guerra», no Essex, na casa de Sir Thomas Price, o seu maior apostador – e, ao cabo de 65 rounds, Humphries foi ao tapete, desfalecido, sem que Dan lhe tivesse tocado. Todos os jornais notaram que a «condição física» de Mendoza atingira «níveis notáveis», no Times, que o declarou, campeão de Inglaterra, um cronista sublinhou-o:
- Desde início ficou claro que o trabalho de mãos e de pés de Daniel Mendoza era bem superior ao de Richard Humphries, embora ambos sejam bouxeurs científicos e muito talentosos, conhecendo e estudando bem, o estilo um do outro.
No dia em que se disse que o Maior Boxeur de Inglaterra (aliás, do Mundo) era Dan Mendoza, ele também mostrou o seu coração: não querendo massacrar adversário a desfalecer
Por essa altura os mais tradicionalistas achavam que a «esquiva era uma atitude cobarde» - e Mendoza, refinando-a, mostrava que não – que era o futuro. Isso mesmo escreveu no livro que publicou: The Art of Boxing:
- … dando à luz o que ficou conhecido como Escola Mendoza ou Escola Judaica, uma nova forma de boxe em que, na verdade, o cérebro substituía a força muscular, através do jogo de pernas. Mendonza revolucionou o boxe assim, foi responsável por introduzir a preocupação com a defesa e a esquiva. Antes de Mendonza, o boxe quase se resumia a dois homens trocando socos de forma ensandecida enquanto tivessem fôlego para isso. Devido á sua baixa estatura e pouco peso, Daniel Mendonza elevou o boxe a um outro nível, mudando, por exemplo, a postura de guarda, mantendo sempre a mão dominante próximo ao corpo, enquanto a outra mão ficava mais esticada, para o jab ou para aparar golpes do adversário.
Algures por 1789, Daniel Mendoza casara-se com uma prima (sefardita como ele) – e ela pedira-lhe que largasse o boxe. Disse-lhe que sim, não cumpriu a promessa – e, a 29 de setembro de 1790, em Doncaster, voltou a combate com Richard Humphries. Já favorito na bolsa de apostas (que movimentava cada vez mais dinheiro, posta em rebuliço, dizia-se, pela endinheirada comunidade judaica de Londres) mas favorito curto (de 5 para 4). No ringue Dan nunca deixou de aparecer dominador e chegando à vitória ao cabo de 72 rounds, num dos jornais ingleses afiançou-se:
- A luta não mostrou apenas que Mendoza é o maior boxeur da atualidade, a sua imensa humanidade foi igualmente visível ao longo da luta. Quando já tinha Humphries exausto, podendo desferir-lhe o golpe tremendo e fatal, não o quis fazer.
De fama cada vez mais ardente escreveram-se poemas e fizeram-se canções em sua honra, chamaram-no a espetáculos em circo itinerante, por cada exibição cobrava 50 libras (e chegava a fazer cinco por semana) de Daniel Mendoza – e de um instante para o outro desatou a esbanjar o dinheiro que ganhava em extravagâncias e excentricidades.
Derrotado por o terem agarrado pelo cabelo, de ser deportado por bater numa mulher, salvou-se (e não tardou que fossem as dívidas a atirar Daniel Mendoza para a prisão)
Andando-se por 1793, Daniel Mendoza foi a tribunal em Londres acusado de ter agredido uma mulher que lhe insultara a esposa – e ante a sentença insinuou-se:
- Talvez a sua fama no boxe o tenha livrado de ser deportado…
Não se livrou, porém, logo de seguida de seis meses de prisão por dívidas – o juiz não se condoeu ao ouvi-lo num murmúrio:
- Com o boxe ganha-se muito pouco, senhor, não dá para evitar que às vezes tenha, em casa, mulher e filhos famintos…
De pena cumprida, logo bateu Bill Warr, um dos prodígios que nascera da técnica que ele aplicara ao boxe, modernizando-o.
Ainda mais arrebatante que Warr, surgiu John Jackson, o Jackson que Lord Byron (que para além de poeta era nadador em destaque) tratou assim (falando-lhe do físico):
- É o homem mais bem formado da Europa.
Cinco anos mais novo que Mendoza, mas bem mais alto e bem mais pesado, Jackson desafiou-o para combate. Daniel dominou os quatro primeiro rounds – e ao quinto, tentando enfeixar-lhe soco na cara, John agarrou-o pelos cabelos e, puxando-o a si, esmurrou-o em fervor. Dan ainda continuou por mais alguns rounds em luta, sangrando profusamente e ao nono assalto deu-lhe o KO. Protestou o «golpe baixo» do cabelo – e tal não serviu para desclassificar John Jackson porque as regras ainda não o proibiam, como não proibiam as mordidelas. Em mais um sinal do seu espírito inventivo, Mendoza decidiu que, para combates futuros, iria de cabelo rapado – e foi o que passaram a fazer também os seus alunos (e muitos outros lutadores, mais…)
Quer Mendoza, quer Jackson receberam, cada qual, 200 libras de bolsas – e à entrada do novo século outra dívida atirou-o uma vez mais à prisão de Carlisle. Não cumpriu a pena toda porque amigos da Maçonaria moveram influências que o soltasse. O xerife do condado de Middlesex chamou-o para seu assistente – ao ver que o comércio de vinhos em que se metera, descambra.
Tendo 42 anos em março de 1806, voltou à ribalta, batendo Henry Lee, por março de 1806: as bolsas que lhe davam para combate eram cada vez mais escanifradas, dessa vez couberam-lhe 50 libras apenas – e colhendo 500 libras de prémio, com esse dinheiro aventurou-se a abrir taberna em Whitechapel – chamou-lhe Almirante Nelson.
Por entre os rufias que reprimiram à pancada distúrbios por causa do aumento dos bilhetes para o teatro
Em 1809, gerente do teatro John Philip Kemble, em Covent Gardens, contratou-o para se juntar a um «grupo de rufias» que reprimissem, à pancada, distúrbios causados pelo aumento brusco do preço dos bilhetes no novo teatro (após o anterior ter ficado reduzido a cinzas, num incêndio) – e o saber-se disso foi «golpe brutal» na sua popularidade, na sua respeitabilidade.
Já com onze filhos, em 1816 publicou a sua autobiografia: As Memórias de Daniel Mendoza – o livro foi um sucesso, aclamado de lés a lés, pelas ilhas britânicas e por lá soltavam-se, amiúde, lamentos por ter, cada vez mais, a vida que tinha (a caminho da miséria), falhando outros negócios a que se atirara – tentando até ser ator…
Vendo-se sem um tostão sequer, a 4 de julho de 1920, um dia antes do seu 56.º aniversário, Daniel Mendoza (que não lutava boxe havia 14 anos) desafiou Thomas Owen, estalajadeiro de Hampshire cinco anos mais jovem para combate que perdeu por 12, ao 12.º assalto. Morreu a 3 de setembro de 1836, aos 72 anos. Ser estalajadeiro fora das suas últimas funções – e num jornal notou-se:
- Embora inteligente e carismático, a vida de Mendoza foi caótica, a má administração de seus ganhos revelou-se falha fatal. Ele morreu em 3 de setembro de 1836 aos 72 anos, supostamente em Inicialmente enterrado no Nuevo Sephardic Cemetery (antigo cemitério judeu onde existe agora parte do campus da Queen Mary University of London), transladaram-no para o Brentwood Jewish Cemetery, no Essex – e Pierce Egan , autor de Boxiana , a história dos primeiros tempos do boxe, afiançou-o:
- Mendoza era um artista completo, a estrela do primeiro brilho.
A Daniel, quando o seu último combate, frente a Tom Owen, ouvira-se-lhe:
- Acho que tenho o direito a que me chamem o pai da ciência no boxe. Pelo menos isso.
Integrado, por exemplo, no Hall of Fame da revista The Ring, no International Boxing Hall of Fame e no The International Jewish Sports Hall of Fame, Daniel Mendoza é tio em quarto grau de Peter Sellers, que pendurou vários retratos dele em alguns dos seus filmes - e também foi personagem em destaque no filme The Young Mr. Pitt de Carol Reed e em The Scarlet Pimpernel, novela da baronesa Emma Orczy.
Em setembro de 2008, placa em honra de Mendoza (feita por Louise Soloway) foi colocada na parede da biblioteca principal da Queen Mary University of London, cabendo o seu simbólico descerramento a Henry Cooper, o campeão europeu de pesados que em 1963 estivera à beira de ganhar a Muhammad Ali o título mundial.
Para além de Daniel Mendonza ter virado igualmente tema de duas histórias aos quadradinhos da autoria – e o Pugilism.org descreve-o como um dos «5 Homens Mais Duros da História do Pugilismo».